A CARTA DE FRANCISCO
Esta semana recebi carta de
Francisco. Há muito ele não escrevia. Apesar de longa, apressei-me logo a
lê-la. Aprecio quando ele aborda os problemas humanos e sociais através da sua
visão holística do mundo, assentada em sólida cultura e, apesar do seu
trabalho, nada dogmática.
Mas, o aspecto mais tocante
presente em suas manifestações é o trato carinhoso com que ele brinda a todos
indistintamente, isso é curioso vindo de um homem austero, de posições firmes,
que sabe contraditar interesses e posições que entende como erradas.
Gosto de receber cartas, algumas
chegam em momentos especiais. Essa, de Francisco, veio revestida desse dom. Sou
pessoa de alto astral, não me deixo abater com facilidade, tenho resistido, sem
danos, aos 8 meses de “prisão domiciliar” sentenciada pelo vírus impiedoso com os
velhos. – Tranquem-se ou morram. Tudo, no entanto, tem limites.
Quando a imoralidade se tenta
cobrir com o véu transparente e roto da hipocrisia, há ainda o vestígio
longínquo da vergonha que pode ser indício da existência de forças submersas para
resgate do lodo da corrupção, que nem sempre é a da pecúnia, às vezes é a dos
costumes.
Quando o vício, o erro, o crime é
saudado num deboche como vitória, entre risos, sem rubor da face, sem vestígios
de pudor não há mais o que fazer. Quando a sacralidade da academia, que é o
saber, é violentada pela vaidade, sem consequências, então preciso refletir
sobre valores.
A carta de Francisco chegou na
hora certa. Um lenitivo. Li de uma sentada. Confesso que tinha a curiosidade de
saber se poderia perceber algum desconforto dele em relação às fake news que já começaram a pipocar por
aqui, tentando a desconstrução da sua imagem pública, logo que ele se
manifestou sobre os problemas da Amazônia.
Em sua Encíclica, do Brasil comparece Vinícius
de Moraes com um trecho do Samba da Benção, “a vida é a arte do encontro embora
haja tanto desencontro na vida”. A música é claramente produto da cultura
afro-brasileira que gerou rico sincretismo religioso. Haverá nesta citação
delicada mensagem do Bispo de Roma, mostrando sua abertura às diversas
manifestações das culturas religiosas?
Não sigo nenhum credo pelo fato
de a minha natureza não estar pronta para aceitar dogmas. Por este mesmo
motivo, não agrego em minhas análises políticas visões obtidas a partir de
matrizes ideológicas. Certo ou errado, sou assim. Respeito quem as têm, tanto
para um, como para o outro caso.
A carta de Francisco, Tutti Fratelli,
é uma carta-circular, uma Encíclica Pontifícia, densa, refletida, dentro dos
dogmas do cristianismo, dos evangelhos e dos dois mil anos de suas tradições,
mas é atual e ecumênica. É mais uma Encíclica elaborada, dentre outras, na
chamada Doutrina Social da Igreja que se iniciou com a Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, numa fase da Revolução
Industrial, em que se acentuou o aparecimento de grandes empresas
monopolísticas, para atender ao sofrimento humano imposto por um capitalismo
desenfreado. Simultaneamente, sintonizado ao mesmo problema, surgiu o Marxismo.
A Igreja de Francisco não é
soberba e vê nas outras religiões a mesma busca do divino e logo nas primeiras
linhas da Encíclica reconhece sua inspiração vinda do seu encontro com o Grande
Imã Ahmad Al-Tayyeb, citado algumas vezes na Encíclica. O documento é uma conclamação a todas as
religiões e a todos os homens de boa vontade ao esforço comum por um mundo
pacífico no qual se pratique a amizade social.
Os temas abordados são os das
nossas preocupações cotidianas, dispostos em oito capítulos graciosamente
redigidos.
Muitos dirão: – Tutti Fratelli é uma Utopia. E só me cabe concordar. O
mundo imaginado pelo Papa Francisco, o Mundo da Amizade Social, do respeito pelo
outro, do que acolhe o migrante, do que apoia culturas diferentes, do que não
entende fronteiras como muros intransponíveis, do que não admite racismo e
discriminações, certamente é uma Utopia, mas talvez a nossa derradeira opção
seja construí-la.
Crônicas da Madrugada.
Danilo Sili Borges. Brasília – Out.2020
danilosiliborges@gmail.com
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