NAS DUAS PONTAS DA VIDA

Por Danilo Sili Borges 

O ano havia começado há poucos minutos. Todos os do nosso restrito grupo familiar, nesse início da terceira década do século 21, falavam das vacinas que estavam para começar a ser aplicadas e que nelas, infelizmente, os políticos brasileiros, mais uma vez, encontraram um modo de mostrar o quão pouco estavam preparados para suas funções.

Resolvi, subitamente, mudar o eixo da conversa em torno da mesa, que confesso, é das coisas que mais gosto de fazer: jogar conversa fora depois de harmonizar os pratos e os vinhos e vice-versa, algumas vezes, mantendo a vivacidade, pela sucessão dos cafés quentes que boas almas lembram de trazer na frequência certa. Anunciei então, “Quero lhes declarar que é ótima a sensação que tenho de estar vivendo meus 80 anos.”

Meu filho mais velho, certamente pensando que meus combalidos neurônios, por efeito das taças a mais do tinto, estivessem tropeçando uns nos outros (os maldosos dirão, um no outro), logo corrigiu: “Pai, por enquanto 79, você só vai completar 80 em maio”.

Eu, maldosamente, esperava pela correção e lembrei: “Na passagem do ano de 1940 para 1941 eu já existia, já tinha sido concebido em agosto ou setembro, portanto, estava naquela ocasião vivo, na barriga da sua avó.”

Pronto. A conversa dali em diante adentrou pelo direito ao aborto ser decidido pela mulher que tenha engravidado. O assunto estava quente, o parlamento argentino tinha aprovado, um dia antes, 30/12, projeto do governo que descriminalizava o aborto feito até a 14ª semana de gravidez. Lá, agora era lei. Na nossa mesa a conversa prosperou com opiniões variadas. A Argentina passou a ser o 67º país a ter o aborto legalizado.

Sem nenhuma recriminação às mulheres que resolvem interromper uma gravidez, quero saudar aqui todas as mulheres, como minha mãe, que em períodos de incertezas, como aquele, com guerras, pandemias, crises econômicas globais ou pessoais resolveram ir adiante.

A vida tem duas pontas, o nascimento e a morte. É minha crença que a Vida é o fenômeno Universal mais importante. Também acredito que uma vida individual merece todo respeito, reverência e proteção, mas não deve ser mantida a qualquer custo, se contrariando o desejo legítimo de quem a frui. Refiro-me aqui à eutanásia.

Ainda no primeiro mês deste ano o parlamento português aprovou o projeto de lei que descriminaliza a eutanásia, que, como esclarece o próprio texto “é a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva, de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico, ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”. O projeto aprovado pelo legislativo seguiu para o Presidente da República portuguesa que poderá, caso o promulgue, transformar a eutanásia em lei. Neste caso Portugal será o 4º país da Europa a admitir a morte assistida como procedimento legal. Note-se que em Portugal o aborto é legal, dentro de certos parâmetros.

Como, aliás, todos os leitores desta crônica, sou sobrevivente pela escolha de minha mãe, ou de meus pais, pelo não aborto, pois este, mesmo ilegal, nunca deixou de ser feito no país.

Ao me aproximar da outra ponta da vida, tomei dentro do possível e do legal minhas providencias, fiz o Testamento Vital, pelo qual ficou assentado que não quero que me sejam aplicados procedimentos médicos, cujos objetivos sejam apenas o de protelar o desenlace quando inevitável. Está escrito assinado e registrado, na presença de testemunhas válidas.

Cabem aqui considerações entre as duas situações. Ambas tratam da interrupção da vida. No caso do aborto a decisão de vida-morte cabe à mãe, na suposição da não consciência daquele ser nos primeiros tempos da gestação, isto é, alguém, um outro, decide por aquela vida. E sessenta e sete países já legalizaram o procedimento e muitos outros estão em vias de fazê-lo.

O aborto encontra difundido apoio dos chamados movimentos progressistas. O pouco apoio dado à eutanásia merece reflexão. Aqui é o detentor da vida que renuncia à sua, tendo em vista as condições de sofrimento, de indignidade, de desesperança.

Penso que não se pode negar a ele o direito de decidir sobre se quer continuar a sofrer ou se prefere morrer. Tudo com a assistência de profissionais da saúde. Levantam-se sempre questões de Direito, de Ética, de juramento profissional. E por que não de Bom Senso, de Humanidade e de Empatia?

Talvez a “dica” para os legisladores esteja em que eles sempre aprimorem as relações entre nós, de uns para com os outros; entre o Estado para conosco, sempre tão desiguais, e em que deixem livres as relações intrapessoais, as de cada um para consigo mesmo.

Crônicas da Madrugada. Danilo Sili Borges. Brasília – Fev.2021

danilosiliborges@gmail.com

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