ENSAIO SOBRE A MUDEZ
Por Danilo Sili Borges
Na realidade, não pretendo
produzir um ensaio, mas como em todas as semanas, uma crônica modesta que não
exceda muito a paciência do leitor. O título ocorreu pelo tema que me fez
associá-lo às obras: Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e As
intermitências da morte, do saudoso José Saramago, prêmio Nobel de literatura.
“Seriam necessários 320 dias de
silêncio caso fosse feito um minuto de silêncio para cada vítima da Covid-19 no
Brasil”, afirmou a Dra. Luana Araújo em seu competente depoimento na CPI, nesta
semana.
Logo imaginei, ao modo de
Saramago, um ano sem ouvirmos vozes humanas. Somente os bebês teriam direito ao
choro e os doentes às lamentações e gemidos incontroláveis. O gênio literário
de Saramago levaria a situação a limites inimagináveis, sabendo associar a
vitalidade do maligno vírus aos tons destemperados que os políticos brasileiros
emitem em agressões desmedidas uns aos outros e aos convidados e convocados a
depor, tornando as belas salas em coliseu de luxo, arenas sem ética ou regras
no irrespirável parlatório republicano. O romancista português, mordaz crítico
de costumes e implacável com os prepotentes, teria matéria farta para saudar a
mudez em benefício da vida e em respeito aos que se foram.
Não sei dizer se a mais válida
homenagem de respeito às vítimas da pandemia é o silêncio sepulcral de um país
de 214 milhões de amedrontados e desassistidos cidadãos por um ano, ou se é o
respeito a vivos e mortos pelo trato respeitoso, honesto e digno a que cada um
de nós tem direito, simplesmente por sermos humanos, pela representação
política do país.
Que semana! Chego aos 80 anos
vendo um Senador da República, agredindo, com chicote na língua uma senhora, a
quem ele não permitia que gemesse; vi soldados cegando propositadamente
cidadãos que estavam nas ruas do Recife protestando, ou não, contra o que quer
que fosse no exercício legítimo da cidadania; vi, como tenho visto, a toga
desrespeitada ao entrar no impróprio debate político-ideológico-partidário
pelos altos magistrados a quem caberia zelar pela sua isenção; assisti
penalizado, generais saindo dos quartéis para ajudarem na instabilidade que
romperá em breve um projeto de democracia que abnegados vêm tentando implantar
no Brasil. Presenciei a rudeza, a falta de educação, o primarismo de ideias
como argumento político. Que tristeza! Que semana!
Tenho vergonha quando tenho que
explicar a amigos estrangeiros com os quais me correspondo há anos, que
discussão é essa que se trava no Brasil entre os que acreditam na ciência e os
que não acreditam. E então eles me perguntam, “e estes que não acreditam em
ciência, acreditam em quê?” e constrangido eu tenho que lhes responder: “no
presidente da República”.
Penso mesmo, Dra. Luana, em pular
de uma borda da Terra plana, a que você se referiu, na abertura da sua
participação, para fugir dos constrangimentos das manifestações medievais, pré-iluministas
a que sou obrigado a acompanhar, mas que infelizmente não é possível, eles não
sabem, mas a Terra é redonda.
Minha combalida esperança se
renovou quando vi a coragem, a competência, o desinteresse por cargos ou
vantagens de uma jovem senhora, de uma médica, que acredita, como não poderia
deixar de acreditar, na ciência e que calou a boca dos inquisidores da nossa
fraca representação política.
É preciso resistir ao
obscurantismo, aos extremismos ideológicos-oportunistas, aos agentes ativos e
passivos da corrupção endêmica, cuja tática é nos manter, a nós, o povo, amedrontados,
acuados sob o argumento do pior, de nos tornarmos Venezuela, ou Cuba, ou Coreia
do Norte pela esquerda, ou Hungria, ou Bielorrússia ou qualquer outra porcaria
pela direita extrema onde liberdades são suprimidas e direitos vilipendiados. Obrigam-nos
a andar no túnel escuro do trem fantasma do circo de horrores. Queremos luz, ar
puro, liberdade para pensar, educação e respeito no convívio mútuo. Política
civilizada sem gabinetes de ódio que a tudo contaminam até os próprios
odientos.
Vamos cuidar dos nossos doentes,
imunizar pela vacinação toda a população e valorizarmos o conhecimento, a paz, a
educação. Basta de estupidez, grosseria, violência.
Na etapa em que
estou, sei muito bem que a vida não vale a luta por objetivos inglórios, mas
vale pela democracia e pela liberdade.
Crônicas da Madrugada. Danilo Sili
Borges. Jun. 2021
danilosiliborges@gmail.com
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