E A VERGONHA CONTINUA
Por Danilo Sili Borges
O ENGENHEIRO ENVERGONHADO
Há poucos dias encontrei no aeroporto do Galeão um colega de turma, que
não via há mais de trinta anos. Aeroportos são ótimos por nos proporcionarem
encontros inesperados. Como eu, ele também vinha para Brasília, onde mora um de
seus filhos. Carlos Silva (nome fictício) e eu nos
formamos em engenharia civil no distante e conturbado ano de 1964, na Escola
Fluminense de Engenharia, então uma jovem instituição, que deu lugar a atual
escola de engenharia da Universidade Federal Fluminense. Lá se vão 51 anos, o
que não é pouca coisa.
As condições materiais da escola eram precárias. Mesmo com muito
esforço, o fundador e diretor da escola, o saudoso Engenheiro Octávio Reis de
Cantanhede e Almeida, não conseguia arrancar recursos razoáveis do governo do
antigo Estado do Rio de Janeiro, que então patrocinava a escola. O corpo
docente, no entanto, supria com dedicação as carências materiais. Ali se faziam
experiências para a modernização do ensino da engenharia no Brasil, que muito
necessitava disso após o boom desenvolvimentista do quinquênio
de Juscelino. Ousaria afirmar que tivemos um curso primoroso.
A Petrobrás, então ainda uma empresa estatal em formação e com acento
grave no seu a, produzia poucas centenas de milhares de barris de
petróleo por dia. Preparando seu quadro técnico, promovia, ao final de cada ano
letivo, nas escolas de engenharia, provas para classificar e recrutar formandos
que tivessem interesse em ingressar na empresa. Carlos, entre outros, topou o
desafio e o risco de vincular sua vida profissional a uma estatal que apenas se
organizava para disputar mercado com gigantes internacionais. Classificou-se e
foi mandado para a Bahia fazer um curso-treinamento numa das áreas da
engenharia de petróleo.
Penso que deva ter se saído bem. Durante nosso curso foi sempre
destaque. Era a ele a quem eu recorria para repor matérias que eventualmente
perdesse na minha agitada vida de professor de “cursinho”, atividade que
mantinha minha economia pessoal. Numa das poucas vezes em que o encontrei após
nos formarmos, num restaurante em Brasília, ele era o típico executivo de uma
grande e bem sucedida empresa. Mesa com muitos convivas alegres, bem vestidos
senhores de meia idade, o que me levou a imaginar que eram seus colegas de
trabalho. Naquela ocasião, a seu convite, fomos para um canto reservado e
rapidamente atualizamos informações dos vinte ou mais anos que se haviam
passado desde nossa formatura. Um tanto orgulhoso, confidenciou-me que estava
cotado para ocupar diretoria na empresa. Felicitei-o com a certeza de que fora
sua capacidade que o levara até ali e que continuaria firme no caminho da
realização pessoal e profissional. A Petrobras já era empresa vencedora e
suporte do desenvolvimento do Brasil.
Passei a acompanhar, com mais atenção, a trajetória do colega e tivemos
ainda rápido encontro num congresso em Salvador, no qual ele era um dos
palestrantes. O mesmo entusiasmo com o trabalho, com a empresa e com a certeza
de que dava contribuição expressiva para o país, que chegava a produzir um
milhão de barris dia.
Cabeça branca, como a minha própria, face encarquilhada comum aos que
deixaram para trás a marca dos 70, andar menos firme, pés arrastados. Tudo
comum e próprio da nossa fase na vida. Contudo, os velhos não precisam ser
tristes e eu vi no olhar, na expressão e na fala do meu colega, profunda e comovente
tristeza. Cheguei a cogitar que ele poderia estar sofrendo de algum mal, desses
que acometem os idosos preparando-os para o fim da linha.
A rápida conversa com a atendente responsável pelo atendimento aos
passageiros promoveu troca de assentos, o que nos permitiu que viajássemos lado
a lado.
Logo, nossa conversa deslizou para o tema do momento: petróleo,
lava-jato, corrupção. Devo ser sincero: gostei da oportunidade de ouvir a
opinião de alguém “de dentro”. Não precisei perguntar. Carlos, eu penso,
precisava desabafar:
– Alguns desses colegas estavam chegando à empresa quando eu arrumava as
malas para sair. Muitos eram engenheiros como eu. Via neles o mesmo espírito
que tinha quando ingressei na empresa. O desejo de servir ao país, ser exemplo
de eficiência e de seriedade. Hoje os vejo pela televisão, presos ou com
tornozeleiras, humilhados, chamados de ladrões. Isso está acabando comigo.
Sinto vergonha! A pior das vergonhas. A vergonha pelo o que outros fizeram.
Com a voz embargada pela emoção, seus olhos encheram-se de lágrimas.
Outras informações, que penso nunca foram veiculadas pela imprensa me foram
dadas, mas que não cabe aqui comentá-las. Nossa conversa continuou até nos
despedirmos no saguão do aeroporto, onde seu filho foi lhe buscar. Trocamos um
longo e sentido abraço.
Como cidadão e engenheiro, formado numa época em que tínhamos certeza do
destino grandioso do Brasil, pude entender o desânimo do meu colega, que é o
mesmo que enfrento.
“A pior vergonha é a que sentimos pelos erros dos outros”.
Texto publicado na revista Voz do
Engenheiro Dez. 2015
Crônicas da Madrugada. Danilo Sili Borges.
Brasília – Ago.2020
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