DOS CAUSOS AO ROMANCE

 

Por Danilo Sili Borges

O melhor contador de causos que conheço se transformou num romancista de respeito. Contar histórias não se aprende na escola – isso pode ajudar a escrever e a falar certinho –, mas essa habilidade nasce com a gente. Para nós, os anteriores à televisão, ao cair da noite após o jantar, íamos nos achegando ao contador de histórias da casa, poderia ser a irmã mais velha, a tia solteirona ou a babá de algumas gerações, já incorporada à família, que assumira essa função pelo seu talento e pelo repertório de fantasias e crendices dos nossos interioranos matizadas com dizeres e expressões trazidas das tradições africanas.

A imaginação fértil da garotada viajava com seres extraordinários, fadas, bruxas, florestas misteriosas, seres medonhos e outros encantadores, mas indispensáveis ao preenchimento da necessidade humana de soltar as amarras da imaginação e do sonho que estão na base de toda criação artística. Alfabetizados, éramos logo apresentados a Monteiro Lobato e nosso mundo encantado se ampliava, mas logo se articulava com o da realidade nua e crua.

Li, há algum tempo, artigo de um psiquiatra em que o autor defendia a tese de que as crianças que tivessem suprimidas essa fase onírica de sua formação teriam grande probabilidade de se tornarem adultos frios, sem empatia, com incapacidade de amar.

As mesmas necessidades continuam e são em parte preenchidas por artefatos eletrônicos que chegam cada vez mais cedo à mão das crianças, mas que as fazem igualmente sonhar.  A natureza humana se impõe, e para todas as idades.  Para o equilíbrio emocional é necessário que tiremos os pés do chão vez por outra, também para os adultos.

É da nossa tradição, por todas as regiões do país, o contar anedotas e causos buscando aspectos regionais curiosos e até burlescos para criar situações e personagens que ficam famosos por décadas no imaginário popular. Durante anos o nosso belíssimo papagaio, por falar, foi personagem de anedotas. Nossos avós portugueses também. Mineiros, árabes, judeus e pelotenses têm frequentado anedotas e causos nascidos da irreverência nacional, espécie de vacina ao sofrimento que a realidade e que homens que não sonharam na infância nos impõem.

Sempre que encontro Rogério lhe digo: ”Até hoje faço sucesso com causos que me lembro dos que você contava”. Rogério de Mello Franco é arquiteto de raro talento e professor por vocação e paixão. Por razões de trabalho convivemos em alguns períodos e desde então percebi que era impossível perder o bom humor em sua proximidade, isso há mais de 30 anos. Ainda jovem, fala mansa, culto, inteligente, observador, detalhista e de altíssimo astral deixava prever o futuro que vem realizando nas suas áreas de atuação.

Recebi, com uma dedicatória, seu romance O Tropeiro da Estrela. O exímio contador de causos utilizou seu talento, sua vasta cultura à sabedoria que o tempo acrescentou, para contar a história de António Corrêa de Mello, origem de sua família. O autor adverte que a obra não é biográfica, os dados que coletou sobre o antepassado são insuficientes para esse tipo de obra e que a partir do que dispõe ele usaria a imaginação para construir o mundo e a história de Tonho, seu avô distante, tropeiro na Serra da Estrela. O livro retrata desde o nascimento do protagonista até sua vinda para o Brasil, em 1841, aos 18 anos.

A história, uma narrativa, transporta o leitor para a belíssima região portuguesa da Beira, Serra da Estrela, Douro, Coimbra passada entre os anos 20 e 40, dos 1800, pela qual ele viaja por trilhas sequer carroçáveis no ritmo da tropa de Abílio Corrêa, numa época em que Portugal ainda sofria os efeitos das invasões napoleônicas, da vinda da família real para o Brasil, da perda do Brasil e da luta intestina com a participação de D. Pedro IV, de lá ( nosso D. Pedro I), numa contextualização histórica que emoldura o romance num clima de realidade.

Quando Tonho embarcou no vapor inglês British Columbia, por força de fatos inevitáveis, o livro terminou e eu fiquei com aquele gosto de quero mais que me levará a uma releitura em breve. Rogério me informou que está no prelo, o TROPEIRO DA MANTIQUEIRA, a continuação que é a vida de António Corrêa de Mello no Brasil e a constituição da sua família por aqui.

A pesquisa geográfica, histórica, linguística para situar o romance no seu tempo com certeza exigiu pesquisa exaustiva. A própria linguagem em que está vazado o texto pela estrutura, colocação pronominal e termos usados anda próximo do falar de além-mar. Encontrei no romance os arquitetos Moraes de Castro e Aleixo, amigos do autor – e meus –  que, aproveitando suas origens lusitanas, os homenageou, tornando-os figurantes dessa bela história.

O livro foi editado em Portugal, de onde também traz a data da sua conclusão.

Com suas 443 páginas, o romance, é para ser lido lentamente, tal como se degusta uma taça de um Alto Douro, com bom naco de queijo da Serra.

Crônicas da Madrugada. Danilo Sili Borges Brasília – abr. 2021

danilosiliborges@gmail.com

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