NÓS, OS DA SELVA

 

Por Danilo Sili Borges

Presidentes deveriam pensar antes de falar. Esta semana, destacou-se o argentino Alberto Fernández, que dando de puxa-saco do primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez, esnobou: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós argentinos chegamos com os barcos. E os barcos vinham de lá, da Europa. E foi assim que construímos nossa sociedade”.

A reação da imprensa brasileira foi de retaliação ao que pareceu ser insulto. O atabalhoado presidente argentino desculpou-se “a quem pudesse ter se sentido ofendido” com sua patacoada. Para conhecermos bem o chefe máximo da seleção albiceleste, penso que é conveniente não inibirmos as manifestações da autoridade argentina, afinal, para saber se alguém é bobo e despreparado para sua função, é preciso deixá-lo falar. E não venham me dizer que estou misturando presidente da república com futebol. Por aqui também fazemos isso, ou não?

Muito da rivalidade entre nossos países tem origem no futebol, tema de um trabalho do historiador Professor Doutor Luiz Henrique Borges (que por acaso é meu filho), que analisa em detalhes todos os episódios desse romance de amor e ódio entre torcidas e entre “hermanos”, que pode ser resumido na expressão: “Os argentinos odeiam amar os brasileiros e os brasileiros amam odiar os argentinos”.

As formações étnicas dos dois países não são coincidentes, mas têm pontos em comum. Afirma-se que por lá houve política deliberada de branqueamento, levada a cabo contra a população negra descendente de escravos e contra os índios, ações continuadas que muitos historiadores consideram como genocídio, visando à redução da melanina na pele da população, o que agora é, subliminarmente, enaltecido pelo simplório Alberto.

No Brasil, a população autóctone sofreu pressões que a levaram ao encolhimento pela aculturação por via religiosa e pelo morticínio para ocupação de terras. Os grupos remanescentes foram sendo empurrados do litoral para as profundezas das matas, ou selva. Como acha o presidente Fernández, foi daí que o Brasil surgiu, num preconceito agudo, talvez provocado por seus atuais contenciosos conosco no âmbito do Mercosul. Freud explica...

O que o presidente argentino não percebeu, mas que visitantes atentos e os imigrantes veem e dão entusiásticos depoimentos, é que a selva que alguns enxergam com o seu sentido de perigo, de região de difícil acesso, de horrores, de animais peçonhentos e povos agressivos não é nada disso! Como nós sempre soubemos.

Na realidade, o Brasil é a Floresta Encantada dos sonhos de todos nós, é o Eldorado que Caminha descreveu a Dom Manuel, a maravilhosa floresta rica de frutos doces e fartos, riachos, plenitude de água a jorrar e igarapés floridos, clima aconchegante, litoral ensolarado com praias brancas, ora interrompido por pães de açúcar, habitado por pessoas lindas e de tipos variados. “Terra em que nela se plantando tudo dá”.

O que Dom Alberto tomou como selva, é uma floresta mágica que não consegue ainda ser vista com a grandeza com que, há muito tempo, a admirou o Escrivão da Frota de Cabral em todo seu esplendor, por ela estar tomada por bandos de assaltantes que lhe roubam as riquezas e tornam reféns o seu povo. Mas isso há de um dia ser vencido, a Lava Jato mostrou que é possível.

Não mimetizamos uma Europa deste lado do Atlântico. Temos cultura própria, nem melhor, nem pior, simplesmente nossa! A integração dos imigrantes europeus e os de todo o planeta que aqui aportaram, logo se incorporam à sociedade brasileira e foram acolhidos de bom grado, como se aqui tivessem vindo à luz. Sou neto de portugueses pelo lado paterno e de árabes pelo materno, nunca ouvi de qualquer de meus avós alguma referência que desabonasse o Brasil em comparação com as terras de suas origens. Eles se tornaram tão brasileiros como nós, ainda que guardassem seus falares característicos.

Há poucos meses, mantive diálogo interessante com um senhor alemão que havia recentemente casado a filha com jovem brasileiro, que fazendo doutorado na Alemanha conheceu a moça. Vindo visitá-la, o culto sogro resolveu conhecer as regiões do sul do Brasil, onde a colonização alemã se deu fortemente nas primeiras décadas do século XX. E de lá voltou decepcionado, não com a industriosidade e a capacidade de trabalho dos descendentes do seu povo, mas por aquelas pessoas que guardam características físicas semelhantes às suas, não mais serem fluentes no idioma e, na maioria dos casos, não terem informações de suas regiões de origem e de suas famílias ancestrais.

Disse-lhe que eu também, como neto de imigrantes, nada ou pouco sabia da minha origem em Portugal ou no Líbano e na Síria, e ele, com um pouco daquela sempre presente superioridade germânica, me respondeu: “– Oh! Mas eles são alemães”. Sem perder a pose, pedi que ele observasse bem, que talvez os pais e avós dos descendentes de alemães que ele encontrou aqui, tivessem sido acolhidos com abraços tão fortes e amigos, que de imediato, e para sempre, passaram a ter corações brasileiros.

Os barcos podem ter vindo da Europa ou da Ásia, podem ter vindo da África com os passageiros agrilhoados nos porões. Todos os que chegaram vieram premidos por suas dores.

No que lhe parece ser selva, presidente, estamos construindo uma sociedade do nosso jeito, de mulheres e homens da cor do bronze, muito lindos.

 

Crônicas da Madrugada. Danilo Sili Borges. Brasília – Jun. 2021

danilosiliborges@gmail.com

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