MÃE PRIVILÉGIO OU SACRIFÍCIO?
Conta a história do cristianismo
que para trazer seu filho ao mundo Deus resolveu concebê-lo no ventre de uma
mulher. Com seu poder supremo e absoluto, poderia tê-lo feito de tantas outras
maneiras que as limitações da mente humana são incapazes de perceber.
À essa virgem jovem, primeiro a
incompreensão do prometido esposo, o desconforto da gravidez e as dores do
parto. Seguiram-se à mulher e mãe, as angústias da vida aventurosa do
predestinado filho homem, flecha por ela lançada ao mundo, no dizer do poeta Kalil
Gibran Kalil, e a dor infinita de vê-lo preso, torturado e morto.
Para sempre, a Natureza por milênios
preparou a mulher para a tarefa de ser a guardiã da vida humana, garantindo-a e
protegendo-a com o ninho do seu próprio corpo. E assim tem sido.
A complexidade e as exigências da
vida social neste planeta, ou em partes dele, opõe-se muitas vezes ao que
dispõe o Universo para o todo e surgem conflitos dolorosos, localizados, mas
nem por isso menos perturbadores, para os que neles se veem envolvidos. Este é
o contexto, como entendemos, das discussões em torno do direito à mãe da
interrupção da gravidez.
Às vésperas da comemoração, entre
nós, do Dia das Mães, a mídia internacional repercute forte crise na maior
democracia do mundo a respeito da liberdade das mulheres decidirem por fazerem
aborto sem restrições legais nos Estados Unidos. Assunto que parecia pacificado
desde 1973 por decisão do Suprema Corte ao interpretar a Constituição (de 1787)
sem que o assunto nunca tivesse sido levado às instâncias legislativas federais.
Até então o assunto era resolvido em cada estado da federação.
Conservadores são, em geral,
contrários à liberdade ampla do direito ao aborto, o que contrasta com a
posição dos liberais. A Suprema Corte, cujos 9 membros são indicados pelo
Presidente da República com mandatos vitalícios, acaba por compor maiorias, ora
liberais, ora conservadoras, ao longo desses quase 50 anos. Obviamente, não é
possível para cada mudança de configuração da corte reinterpretar, “in totum”, a
Lei Maior e assim tem sido.
Atualmente, há maioria
conservadora de 5x4. Versão preliminar de voto do Ministro Samuel Alito em caso
concreto, vazado à imprensa, permite antever que o entendimento da gravidez até
a 23ª semana deverá ser revisto, com base em nova interpretação da
constituição, diga-se, documento paradigmático para a elaboração dos preceitos
garantidores das liberdades individuais por todo o mundo, característica da
América e sua melhor contribuição ao mundo nos séculos XIX e XX.
O conhecimento público da
possível reinterpretação da legalidade do aborto, alertou os movimentos
feministas que foram imediatamente às ruas na defesa da autonomia da mulher
decidir pela não continuidade da gravidez, sob o forte argumento da liberdade
individual de tomar decisões sobre o seu próprio corpo.
Em muitos países essa propriedade
é constante dos códigos legais, em quase todos os demais a discussão vem sendo
travada nas câmaras legislativas, na imprensa, nas ruas e praças, a fazer parte
importante da pauta internacional das mulheres pela igualdade de direitos. A
inegável influência cultural norte-americana é paradigma para reivindicações
libertárias, uma mudança no entendimento da sua legislação quanto ao direito ao
aborto, significaria o enfraquecimento da luta que vem sendo travada.
Surpreende-me como brasileiro,
leigo nas leis e na estrutura jurídica do nosso país e mais ainda na americana,
saber que assunto de tal importância e repercussão, por lá, se decide com base
na Constituição de 1787, seus sete artigos e 27 emendas, sendo a última de 1992
e que poderá agora ser alterado, com entendimento na mesma Constituição
original, por releituras.
No Brasil, após a Independência
em 1822, já tivemos 7 textos constitucionais. A atual, a famosa Constituição
Cidadã, como a denominou Ulisses Guimarães, tem 245 artigos, sofre constantes
emendas, (pelo que apurei, 117 até abril de 2022) dizem que para aperfeiçoá-la.
Do meu posto de observação, parece-me que sempre para acomodar interesses, nem
sempre tão republicanos quanto deveríamos esperar.
Especificamente sobre a
interrupção da gravidez, por aqui a legislação só a permite em circunstâncias bastante
estreitas e bem determinadas. Feministas pretendem ampliar direitos de
autonomia de decisão por parte das mulheres, ao que movimentos religiosos
vigorosamente se opõem.
Fatos esdrúxulos, quase cômicos, ocorrem
devido a essa polêmica. Há poucos dias, um candidato à presidência da
República, em entrevista, manifestou-se a favor, tentando agradar às
feministas, logo gerando reação dos evangélicos, o que lhe obrigou a um
contorcionismo de opinião, afirmando que politicamente ele era a favor do
aborto, mas pessoalmente contra. Ninguém entendeu sobre o que ele realmente pensa!
Uma no prego, outra na ferradura.
Para dar guarida a gente assim é
que precisamos de uma constituição tão grande.
Crônicas da Madrugada. Danilo
Sili Borges. Brasília – Mai. 2022
O autor é membro da
Academia Rotária de Letras do Distrito Federal. ABROL BRASÍLIA
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